Narrativas de prática metodológica da sócio-história

Após meu concurso para professor associado, em 1999, meus estudos se direcionaram de forma mais explícita para a história e as recomposições contemporâneas dos poderes do Estado, com acento nas transformações das elites políticas e demais grupos dirigentes (recrutamento, modos de legitimação, trajetórias), que são inseparáveis de invenções de instituições como a escola, o voto e a representatividade parlamentar.
Esta direção dada ao meu trabalho prolonga o tema de meus concursos anteriores - a transmissão do poder político - bem como expande estudos motivados pelos seminários que dirigi no programa de pós-graduação em Educação, e das aulas ministradas no curso de Licenciatura.
Assim, nos sete anos decorridos desde o último concurso, meu trabalho acadêmico esteve direcionado a uma história do poder e deve ser visto na perspectiva da sócio-história do político que une os problemas estudados e os explica por meio do encaminhamento genético, ou da historicidade, dado às categorias de análise das questões políticas. Melhor dizendo, a essência do trabalho realizado nesse período reside na maneira como procurei abordar os objetos, construí-los, recolher o material de pesquisa e trabalhá-lo com referência a outros objetos, fossem eles a instituição escolar, o Estado Nacional, o voto, a transnacionalização ou as elites no poder. De fato, nos meus estudos, procurei transformar questões da atualidade em problemas científicos, reconstituindo a gênese delas por meio do trabalho em arquivo - a mim familiar como historiadora -, e investindo no aprendizado dos métodos da sociologia, que cada vez mais sentia como necessários para construir de uma maneira menos empírica o objeto político em história. São lições que retive das minhas releituras das obras de Marc Bloch (história problema) e das demais realizadas no âmbito da sociologia (Max Weber, Durkheim e Bourdieu[1]) e do programa de pesquisa proposto pelos sócio-historiadores do político[2]. Evocando aqui um percurso de estudos e pesquisa, quero dizer que esse método sócio-histórico foi se constituindo aos poucos, na medida em que seu poder de construção dos fatos se afirmava no trabalho sobre estes mesmos fatos.


NOTAS

[1] O fato de Durkheim sublinhar que a sociedade é composta de indivíduos e de coisas e que o reconhecimento de um fato social se dá a reconhecer a partir do poder de coerção que exerce sobre nós (As regras do método sociológico) me ajudou, junto com as reflexões de Max Weber sobre as relações de dominação, a trabalhar a problemática do poder com atenção para as interações da vida quotidiana e nos laços que nos unem uns ao outros. O conceito de campo de poder de Bourdieu e o de configuração de Norbert Elias encaminharam-me para o estudo relativo à emergência do Estado com base nos indivíduos em competição.
[2] Cf. Yves Déloye e Bernard Voutat, Faire de la Science Politique, Paris, Belin, 2002.

O caso e o exemplo em sala de aula e nos trabalhos do FOCUS: elaboração de problemas históricos

La familiarité nous empêche de voir tout ce que cachent les actes en apparence purement techniques qu’opère l’institution scolaire.

P. Bourdieu, “Le nouveau capital”, Raisons Pratiques



Tomo como exemplo deste percurso as minhas aulas na Licenciatura (EL200 – Educação e Sociedade) nas quais problematizava a maneira particular de a escola socializar. Nos seminários e nas aulas percebia como o fato de ter freqüentado a escola, e ainda aí estar presente, contribuía para que ela parecesse a cada um dos estudantes, e também aos autores de manuais sobre educação, como algo natural, por extensão, universal, modelo ecumênico de acesso ao bem comum. As significações de uma educação escolarizada, a moral que ela difunde, o valor e a oportunidade da extensão e a obrigatoriedade da escolarização a todos, que foram motivo de tantos debates no século XIX, pareciam estar esquecidos, mergulhados nas mobilizações coletivas que acompanharam sua difusão e nas tradições e regras da organização pedagógica. Passei a notar, também, um interesse dos alunos para a história ideológica das idéias educacionais, na qual é apagado todo o trabalho social e político da produção da instituição escolar.
Nas leituras bibliográficas que eu realizava incomodava-me perceber que a maioria dos autores, longe de procurar conhecer os procedimentos que materializam as significações da escola, bem como as normas de conduta a demonstrar em relação a ela, se contentavam em declarar sua necessidade e tentar aperfeiçoá-la. Do lado dos historiadores da educação, percebia a atenção se voltar para a organização formal das instituições numa tentativa de explicar, pela história regressiva, os processos de nacionalização do sistema escolar e os seus momentos fundadores. Malgrado a abundância e a qualidade dos trabalhos a que me via exposta na Faculdade de Educação, espantava-me o fato de a maioria deles confundir formas de ensino e de aprendizagem existentes nas sociedades as mais diversas, no tempo e no espaço, com o que nós conhecemos como “escola”, que faz parte da nossa experiência de vida. Essa confusão entre a forma escolar contemporânea[1] e formas de aprendizagem que diferem profundamente dela, impedia, no meu entender, a compreensão da construção histórica do “objeto escola” e sua imposição como princípio da atividade de socialização das crianças pelos Estados Nacionais, a partir do final do século XIX.
O FOCUS, Grupo de Pesquisa sobre Instituição Escolar e Organizações Familiares, foi criado para respaldar essas reflexões, centradas no sentido revolucionário que a educação escolar deu à socialização no mundo contemporâneo, ou melhor, no significado da passagem de uma sociedade regulada pelo simbólico, pela religião, a uma sociedade regulada institucionalmente pelo político, o Estado. Nesses termos, posso afirmar que fui pioneira numa determinada linha de estudo e pesquisa na Faculdade de Educação, a qual procura ver a escola como produto de um longo trabalho de dominação jurídico-política com o qual fomos obrigados a nos acostumar.
Nestes termos, organizei um programa de ensino que pretendia desembaraçar o que eu pensava estar confundido, centrando-o em torno de três acontecimentos bem datados: o discurso de Jules Ferry sobre a escola obrigatória (leis de 1880-1882), a promulgação das Leis Orgânicas do Ensino, no Brasil, em 1937, e a revolta estudantil de 1968, que iniciou, ao que tudo indica, o abalo na crença no sistema escolar.
Com o título de “História da Escola e da Família”, que já havia sido intitulado anteriormente “A invenção da forma escolar e seus efeitos na sociedade contemporânea”, o objetivo das aulas era mostrar, a partir de fotos de arquivos, filmes, discursos de época, legislação e seus autores, que a escola podia ser pensada das formas as mais diferentes pela simples e boa razão de que o sistema escolar é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que um modo de transmissão de conhecimentos universais e emancipadores. A idéia era abordar aspectos metodológicos concretamente, por meio de exemplos que dessem a pensar acerca de conceitos a partir dos quais nós entendemos a escola e sua relação com a política, o saber, a cultura. Sem interesse numa meta-teoria, queria evidenciar os instrumentos implícitos e explícitos a partir dos quais nós vemos o mundo social presente e passado, de verificar que efeito os conceitos mais gerais produzem à escola e o que a escola lhes produz. A reflexão sobre esta questão pode se desdobrar em direções muito diferentes, razão pela qual, no meu programa de curso, escolhi três delas.
Assim, o fato de a escola separar a criança da família (um mundo social separado do mundo adulto), inculcar conhecimentos separados das práticas (aprender a ler e escrever fora da situação do jogo social imediato, com o único fim no ato mesmo) levou muitos estudiosos a pensar a socialização escolar integrada no grande movimento de subjetivação moderna que forma o indivíduo racional, pertencente, de um lado, à comunidade abstrata de uma sociedade democrática de iguais, e de outro lado, o ser único, incomensurável. A escola operaria essa estrutura subjetiva ao introduzir uma relação particular aos afetos (sublimação dos sentimentos – amado na família, tratado como um entre outros na escola), levando a criança a aprender a distinguir o sentido de “privado” e “público”[2]). Da mesma maneira, a necessidade de comunicação no século XIX, transformada em fator decisivo no ajustamento dos códigos que editam as normas geradas pelos agentes do Estado[3], induziu outros pesquisadores a ver o processo de institucionalização da escola como parte do modo de dominação moderna traduzida no problema, historicamente inédito, de alcançar a unificação de todos os códigos: jurídicos, métricos, lingüísticos, operando as formas de comunicação, burocráticas em especial. Graças à escola, um grande número de indivíduos dispersos, que não se conheciam anteriormente, passou a receber as mesmas mensagens escritas, por meio das quais os dirigentes de Estado puderam forçar a obediência da população e transmitir conscientemente (e também, em certa medida, inconscientemente), o inconsciente, ou melhor, as afinidades subterrâneas que unem as obras humanas[4]. Por fim, com exemplos de caderneta de notas escolares, casos de violência nas escolas e fora dela, etc., procurei enfatizar também a existência do pensamento sobre a escola numa outra dimensão das relações de poder, que é de ordem mais simbólica. Seria esse o estudo da lógica da competição que domina a instituição e, sobretudo, o efeito de destino[5], que exerce sobre as crianças e, em especial sobre os adolescentes. Que efeitos estas três visões de mundo social produziram sobre a escola e o que a escola produziu a partir delas?
Gostei de ver, em 2006, este último aspecto que abordei nas salas de aula ser apresentado no filme de João Jardim, “Pro dia nascer feliz”. Comparando alunos de diversos colégios e seus destinos, as imagens e falas existentes nesse filme me fizeram querer voltar às aulas da Licenciatura para discuti-las com meus estudantes. No entanto, em 2002, tive de ser afastada da sala de aula por razões de saúde. Uma paralisia bilateral nas cordas vocais desaconselhava o esforço da fala na sala de aula que poderia agravar o sistema de oxigenação do meu cérebro.
Assim, desde 2003, o FOCUS tem sido o local privilegiado para eu poder realizar estas reflexões tendo em vista as pesquisas empíricas que aí estiveram sediadas ou que aí foram discutidas. No seu seminário anual, intitulado “O caso e o exemplo numa metodologia de pesquisa”, desde 1994 muitos pesquisadores, nacionais e internacionais, expuseram seus trabalhos, enfocando, como sugere o título do seminário, o problema da passagem do caso a alguma coisa mais geral, visando uma reflexão científica.
O que me levou a organizar esse seminário foi o interesse em incentivar mestrandos e doutorandos a pensar a partir de um caso empírico teoricamente construído. Neste, e em outros seminários e colóquios do FOCUS, diversas pesquisas empíricas versando sobre o tema Escola, Família e Cultura foram discutidas e muitas derivaram em publicações coletivas que coordenei, como o livro Circulação internacional e formação intelectual das elites brasileiras, Unicamp, 2004, (junto com Afrânio Garcia e Ana Almeida) (doc.36) e cinco dossiês: “Escola, Família e Profissão” (Pró-Posições, nº9, nº1[25], 98) (doc.32), “Família, Escola e Sociedade” (Cadernos CEDES nº42, 1997) (doc.34), “Education et sélection des élites au Brésil” (Social Science Information, vol.40, nº4, 2001, com Afrânio Garcia) (doc.37b), “Le Brésil et le marché mondial de la coopération scientifique” (Cahiers du Brésil Contemporain, n°57/58 – 59/60 2004-2005, com Marie-Claude Muñoz) (doc.38); “Literatura, teatro e mutação do espaço político” (Pró-Posições, Vol 18, n.3 [51] – set/out 2006) (doc.39).
Na “Oficina de Projetos” do FOCUS, que é uma reunião mensal onde se discutem projetos de pesquisa em curso, tive a oportunidade de trabalhar com estudantes em tese, de forma efetiva, os momentos chaves de cristalização e de objetivações da forma escolar. Desde 1994, foram aí defendidas 24 dissertações de mestrado e 17 teses de doutorado. Dessas teses e dissertações, 30 são voltadas diretamente para o tema Escola e Cultura, que hoje entra no catálogo da Faculdade como uma disciplina do nosso recém-criado Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte - DELART. Dentre as teses e dissertações, dezesseis foram orientadas diretamente por mim (doc.40). Gostaria de ressaltar as mais recentes, como “Três Escolas para Meninas”, defendida em 2005 por Graziela Perosa (hoje professora concursada na USP Leste) que acaba de publicar um artigo sobre seu trabalho de tese no último número 26 da revista Pagu. Em 2006, Marcos Aurélio de Lima defendeu “A Banda Estudantil em um toque além da música”, que está no prelo para ser publicada com financiamento da FAPESP. Também de minhas orientandas, está para ser publicada a tese de Diva Otero Pavan: “Duas histórias relacionadas: a professora primária paulista e o sistema nacional de ensino”, defendida em 2003. Em 2001, foi publicada a tese de Lia Braga Vieira, intitulada A construção do professor de música, Belém, Cejup.
Com os trabalhos de teses dos estudantes, aliados às pesquisas empíricas discutidas nos seminários do FOCUS, procurava, nas atividades que passei a dirigir no programa de Pós-Graduação, (Atividades programadas de pesquisa I e II – Mestrado e doutorado) tornar menos abstrata a construção do Estado e sua relação com a institucionalização da escola, a partir do princípio do caráter conflitual das relações entre os indivíduos, isto é, das lutas de concorrência e das competições entre os homens para adquirir o poder ou honras. Evidenciar estes aspectos, inseparáveis do papel que a instituição escolar republicana desempenha na redefinição das condições de acesso ao conhecimento, muito contribuiu para que eu pudesse pensar, mais profundamente, como a sociedade democrática lida com outros modos de aquisição de conhecimentos, como os ligados ao saber político, assim como a transmissão deles, problemas em cima dos quais venho matutando desde o início dos anos 1990.


NOTAS


[1] Expressão retirada do trabalho de Guy Vincent, L’école primaire en France, Lyon, PUL, 1980, que a utiliza para designar uma mudança de instituição e uma revolução no modo de socialização na qual se projeta a fabricação de um “ser social”, capaz de participar de uma maneira de estar junto, necessária a uma sociedade democrática, dominada pelo Estado-nação.
[2] Cf. Jean-Manuel de Queiroz, L’école et ses sociologies, Paris, Nathan, 1995.Ver, ainda, o clássico Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar.
[3] Sobre este assunto ver, entre outros historiadores do sec. XVIII, Roger Chartier, “A construção do Estado Moderno e formas culturais. Perspectivas e questões” in História cultural, Lisboa, Difel, 1990, pp. 216-229; Ver também Pierre Bourdieu, “L’esprit d’Etat: genèse et structure du champ bureaucratique”, in Raisons Pratiques, Paris Seuil, 1994, pp. 99-135.
[4] Cf. Bourdieu, “Stratégies de reproduction et modes de domination”, ARSS, nº105, p. 3-12,. 1994.
[5] Uma questão examinada no sentido desenvolvido por Pierre Bourdieu, La noblesse d’Etat,Paris Minuit, 1989. Visto também no sentido da grande brutalidade psicológica imposta pela instituição escolar por meio de seus julgamentos e seus veredictos que dispõe todos os alunos numa hierarquia única das formas de excelência - dominadas hoje por uma disciplina, as matemáticas. A questão foi examinada por meio da relação entre o que Bourdieu denomina “nova delinqüência escolar”e a lógica da competição exagerada que domina a instituição, levando os excluídos a rupturas brutais para restaurar a identidade ameaçada e que foi exemplificada, no caso brasileiro, com as depredação das escolas, agressões a professores e tráfico de drogas. Cf “Le nouveau capital”, in Raisons pratiques, Paris, Seuil, 1994. “Reprodução Cultural e Reprodução Social”, in A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1992; “As categorias do juízo professoral”, in Maria Alice Nogueira e Afranio Catani (org.) Escritos de Educação, Petrópolis, Vozes, 1998, pp. 185-216.