A família, a escola e a questão educacional

Publicado em Leitura: teoria e prática, v. 21, p. 5-15, 1993.

O ato de educar implica a existência de pessoas a serem educadas e de pessoas interessadas em educar alguém. Começo com esta evidência porque é costume nomear as duas instituições acima, a Família e a Escola, como as encarregadas desta prática social Como não existe uma instituição em abstrato, o título escolhido para esta introdução tem o propósito de sugerir que este livro tratará da questão educacional em relação direta com as pessoas que, dentro dessas duas instituições, competem pelo direito de exercer o ato de educar e de serem educadas.
Tudo isto pode parecer transparente, dispensando demonstrações. Este ato faz parte de nossas própria experiência existencial e de nossos filhos. Entretanto, como questão, costuma ser apresentado de forma irrefletida nas falas e nos trabalhos escritos sobre a problemática da Educação. A tendência é tornar genérico e natural o fato de a aprendizagem das condutas e dos saberes ter sido, lentamente, transferida da Família para a Escola.
Hoje, quando se fala em educação, fala-se em educação escolar. A tentação de considerar a escola como uma realidade quase eterna cobre com um silêncio inquietante as ações que tornaram possível a delegação a uma instituição escolar de grande parte das obrigações que antes c.bia aos pais, à comunidade e às organizações religiosas. Ora, esta delegação não ocorreu de forma natural, e o que chamamos “escola” é uma novidade . da história do ensino ou da pedagogia. O sociólogo Guy Vincent designa esta novidade de forma escolar, procurando indicar com esta noção uma revolução nos modos de socialização até então conhecidos. Para ele, trata-se da fabricação de um “ser social”, de um ser capaz de participar de uma “maneira de estar junto”, que ele caracteriza pela capacidade de obediência a regras impessoais, se opondo a outras formas de poder que repousam sobre a vontade ou a inspiração de uma pessoa.
Um problema pouco pensado pelos educadores é a maneira como a Escola se tornou este meio de isolar as crianças durante um período de formação tanto moral quanto intelectual, de adestrá-las graças a uma disciplina mais autoritária e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos. O fenômeno foi estudado pela primeira vez, com detalhes, pelo historiador Philipe Ariès, que desenhou um meticuloso quadro desta transformação na Europa Ocidental e indicou a ligação estreita da ação dos reformadores religiosos dos séculos XVI e XVII com o afastamento das crianças da comunidade dos adultos.
Mas foi somente durante o século XIX que mobilizadores políticos e reformadores sociais conseguiram implantar a idéia de que a comunidade, a família e a Igreja eram obstáculos para o que concebiam como progresso social. Quero dizer, um obstáculo para a homogeneização da sociedade que se pretendia transformar em nacional. Ora, a família conservava saberes comunitários e outras tradições que contribuíam, de acordo com esses reformadores, para retardar o crescimento da comunidade política e do Estado Nacional. Em razão de sua enorme influência emocional, ela era considerada perigosa por inculcar, por meio da aquisição da língua materna ou da manipulação das expressões locais, dos símbolos particulares, das crenças religiosas e das relações de parentesco, modos de pensar e de atuar que se transformavam em hábitos contrários à idéia de “uma comunidade de sentimentos e interesses que assegura o respeito aos direitos do homem e do cidadão”. Em outras palavras, os ideais de Educação que conhecemos hoje foram divulgados e colocados em prática pelos mesmos mobilizadores políticos responsáveis pela “invenção do cidadão”, no século XIX, quando o Parlamento tomou o lugar da Igreja no centro simbólico da sociedade.

Pois é preciso lembrar que não existe registro histórico que prove a procura espontânea do “povo” pela instituição escolar. Ao contrário, existem muitos registros de lamentos de pais angustiados e de dramas familiares que, no início do século XX europeu, estiveram acompanhados de contos exemplares narrando as vantagens da educação com disciplina autoritária e exercida longe da vida familiar e com as crianças separadas por idade. Mas não faltam registros sobre o processo de intervenção do Estado Nacional para a concretização desse direito.
Estas intervenções surtiram efeito porque foram acompanhadas do trabalho coletivo da gestão da família, tanto material (documentos de identidade mencionando o sobrenome, a data de nascimento, estado matrimonial, nome dos pais, etc.) quanto simbólica (salvaguarda da nação, o bom filho, bom pai, bom esposo é também o bom cidadão). Através da aprovação do direito da família, e de diversos organismos encarnados por especialistas, seja instituições sociais (caixas de pensão para famílias, viúvas, ajuda social à infância), ou disciplinas científicas (demografia, psicologia), o ser humano iniciou a sua experiência de vida privada controlada pelo Estado. A gestão tomou a forma de codificação de práticas de puericultura, médico-pedagógicas e da mobilização de agentes encarregados da difusão e da expansão dos serviços de saúde, de especialistas para elaborar e fazer aplicar as leis da família, além de promover o desenvolvimento dos órgãos estatísticos governamentais. A partir dos órgãos estatísticos, os especialistas iniciaram a prática de formular os índices necessários à ação das pessoas encarregadas de legitimar e naturalizar a intervenção estatal, unificada com o nome de política familiar, política social ou política educacional. Uma política racional, científica, baseada no formalismo jurídico e voltada para a resolução dos “problemas sociais”, isto é, para o que está constituído, num momento dado, como “crise” do sistema social.
Na Europa, essa intervenção estatal data do século XIX. No Brasil, na área da Educação e da Saúde, o marco é a década de 30 deste século, durante o Governo Getúlio Vargas. No que tange ao Código Civil, sua promulgação é datada de 1916. Hoje esta intervenção é considerada natural, e a experiência escolar é tratada como qualquer experiência necessária à vida. A Escola exerce, na mentalidade contemporânea a função genérica de educar. A Família, definida de maneira explícita pelo código civil ou implícita nos questionários do IBGE, é considerada normal quando preenche os modelos oficiais e idealizados das relações humanas.
Nesse sentido, a hipótese estudada pelo Grupo de Pesquisa Instituição Escolar e Organizações Familiares – FOCUS –, na Faculdade de Educação, é de que a nossa dificuldade para enfrentar o “problema educacional”, ou a “crise da família” está no fato de ela se encontrar diante de representações preestabelecidas induzindo uma maneira de apreendê-la e de concebê-la. Torna-se muito difícil superar essas pré-noções, pois nós nos servimos delas para os usos correntes da vida.
Os historiadores da escola e da família não costumam prestar atenção a esses aspectos e menos ainda consideram a maneira como os especialistas em políticas públicas se utilizam dos dados extraídos dos órgãos governamentais, especialmente os numéricos, sobre a circulação de crianças pobres fora da Escola, para representar e gerar a idéia da família e da educação escolar como o grande problema da atualidade. Ao conceber a família conjugal e a educação escolar como naturais, e divulgar a crença de que a família fora deste modelo produz desajustados, deformados sociais e delinqüentes em potencial, os reformadores e planejadores cobram de professores, dentro das escolas de periferia, responsabilidades que não lhes cabem: a formação física, mental e social das crianças. Sendo impossível assumir tal responsabilidade num espaço tão pequeno e afastado da vida social, temos hoje, como resultado, professores das escolas públicas indecisos, inseguros e culpados.
É neste sentido que nossa reflexão volta-se para as disputas que se observam entre os diversos especialistas da área social e econômica para o controle do ato de educar em nome da normalidade pública. Melhor dizendo, procuramos ir além do pensamento daqueles que crêem que a chamada crise educacional está situada na família ou no interior da Escola, sem pensar que estas duas instâncias sofrem na interação de muitos campos de atividades concorrentes, interessadas numa definição de moral da vida social. É o caso dos partidos políticos com programas em favor de famílias e escolas, especialistas em direito familiar, imprensa, ciências sociais e tantos outros interesses que ao influenciar o conteúdo da política familiar e escolar transformam-no em interesses de corporações.
Por outro lado, sabemos bem que a delegação de grande parte do trabalho dos pais a uma instituição escolar produz efeitos diferentes, de acordo com o poder de que dispõem as famílias em relação à Escola. Aquelas freqüentadas pelos grupos sociais mais favorecidos permitem, por meio de suas atividades esportivas, de associações de ex-alunos, entre outras, o controle do contatos interfamiliares mais extensos que os anteriormente controlados pela família. É assim que esses estabelecimentos aparecem como substitutos do poder familiar, encarregados de transmitir um modelo de educação mais homogêneo, fazendo esquecer tudo que esta realidade que chamamos família tem de arbitrário, de privilégio social. Um privilégio que implica ser como se deve ser, dentro da norma, de se aproveitar simbolicamente desta normalidade. Nem todos podem. Assim, as escolas técnicas e as escolas públicas têm, por sua vez, objetivo de formar mão-de-obra, recrutada nas famílias operárias, nas de técnicos e de pequenos empresários. Num outro extremo, existem as chamadas “escolas experimentais”, que procuram satisfazer a demanda dos filhos dos intelectuais, encarregados de afirmar o Estado moderno e a transformação das sensibilidades políticas.
E as demais crianças, que vivem em famílias condenadas por não viverem segundo a norma do que foi instituído como família? Refiro-me aos filhos de pais considerados pelas assistentes sociais, e demais especialistas e peritos autoritários, incapazes de educar a sua vasta prole que vive em condições miseráveis. Essas crianças foram transformadas em números de fracasso escolar e fracasso familiar, sendo utilizadas como meios de justificar novos grandes projetos educacionais e de assistência social. Estes projetos só funcionam na medida em que os diversos agentes sociais – que aí investem e se envolvem, na luta por seu bom funcionamento – contribuem, em função do antagonismo que sua ação gera, para conservar e reproduzir as bases sociais da escola e da família legitimada pelo Estado, de quem recebem os meios de existir e de subsistir.