Heranças e aprendizagens na transmissão da ordem política brasileira (1945-2002)

Publicado em Cadernos Ceru, São Paulo/USP, v. 15, p. 103-130, 2004.


Resumo
O espaço de poder no Brasil está sendo cada vez mais ocupado por indivíduos com investimento acadêmico em escolas de prestígio no exterior e que construíram suas carreiras em mercados internacionais de conhecimentos técnicos. Para compreender os efeitos desse fenômeno na competição democrática, este trabalho explora dados biográficos de 34 políticos brasileiros em posições representativas nas instituições centrais do Estado (Parlamento, Executivo) em dois períodos de reestruturação do espaço político brasileiro (1945/64 e 1984/02). Analisa os recursos sociais e o tipo de conhecimento escolar utilizados por eles, avaliando-os a partir das chances desiguais que lhes foram oferecidas para permanecer e atuar no campo instável da política.

Abstract
Positions of power in Brazil are increasingly occupied by individuals with international experience at prestigious schools and by those who have built their carriers with the benefit of knowledge obtained in international market. To understand the effects of this phenomenon on competition in a democratic context, this paper explores biographic data for 34 Brazilian politicians who held important elected positions in the central government (Congress and the Executive) during two key periods of restructuring in Brazilian politics (1945/1964 and 1984/2002). The paper analyses the social resources and types of academic knowledge that these politicians used to maintain and advance their careers. The politicians are evaluated in the context of the advantageous and unequal opportunities that they benefited from at the beginning of their carries, and which contributed to their success and staying power in the unstable field of politics.


Este artigo resulta de uma exposição feita no XXVI encontro Anual da ANPOCS, em 2002. Devo agradecimentos a Joana Canedo e a Afrânio Garcia não só pela competente leitura e discussão da primeira versão deste texto, como também pela disponibilidade e amizade demonstradas. A pesquisa foi financiada pelo CNPq.


Introdução
A ocupação de posições dominantes na esfera política brasileira vem sendo descrita pelos estudiosos como uma progressiva substituição de antigos bacharéis, com seus conhecimentos de direito constitucional, por indivíduos que combinam conhecimento técnico sofisticado com sensibilidade política. Fernando Henrique Cardoso é sempre o modelo citado. Economistas eleitos por voto popular para o Parlamento, como José Serra, Delfim Neto, Eduardo Suplicy, entre outros, são exemplos paradigmáticos fornecidos para mostrar o afastamento dos especialistas em direito das posições representativas nas instituições centrais no Estado (parlamento, executivo). A base da descrição desta história política situa-se na reestruturação do espaço político que se seguiu ao período de domínio dos militares e na emergência de uma nova ordem econômica mundial, com as implicações daí decorrentes em termos de desemprego e intensificação das crises financeiras. Tais fatos teriam contribuído para o aparecimento de novos atores políticos cujas propriedades sócio-profissionais, assim como os procedimentos pelos quais são recrutados, divergiriam das que caracterizaram os representantes dos partidos dominantes nos anos anteriores a 1964.
Dentro deste raciocínio, pesquisadores que estudam o fenômeno incluem os titulares de posições político-administrativas, como Pedro Malan, no grupo de políticos modernos. Alegam que “o limite entre o que é a tarefa do burocrata e o que cabe ao político vem-se tornando cada vez mais tênue e, em alguns casos, há um total ‘embaralhamento’ destas duas funções” (Loureiro & Abrucio, 1999:69). Isto porque estes burocratas, portadores da competência técnica necessária para administrar a economia, orientam programas de ação comprometidos com a governabilidade, a qual é gerada nas relações negociadas entre o executivo e o legislativo. Mesmo agindo com conhecimento técnico sofisticado adquirido em escolas de alto-padrão, muitas vezes pertencentes ao circuito internacional, suas ações e discursos estariam cada vez mais norteados pelos sinais emitidos por políticos locais. No Parlamento, a atuação dos políticos profissionais estaria cada vez mais baseada no discurso técnico, o que o crescimento do número de deputados federais eleitos com diploma de economista ajuda a confirmar (Rodrigues, 2002:103).
Para a maior parte dos autores, a ponte entre os interesses representados pelos políticos e as decisões burocráticas provenientes desse conjunto tecnocráticos resulta do envolvimento do Estado brasileiro com a abertura das economias, as privatizações, a implantação do consenso de Washington e a conseqüente necessidade de uma atuação mais eficiente tanto por parte do poder executivo quanto do legislativo. Diante deste imperativo, “as elites partidárias”, que influenciam a indicação dos candidatos e o voto dos eleitores, encaminham a preferência dos cidadãos para políticos com conhecimento técnico especializado para atuar nos vários programas de “ajuste estrutural”.
Esses argumentos vêm alimentando a idéia do político profissional como objeto de opróbrio, com argumentos estigmatizados, como se vê nas denúncias dirigidas, de maneira generalizante, aos que vivem para e da política no Parlamento eleito. Contribuem também para aumentar a suspeita dos eleitores de que os políticos eleitos obedecem a interesses ligados a um mundo à parte, e não aos interesses dos votantes.
Os analistas não examinam, no entanto, quem foram os políticos bacharéis e nem quem são os indivíduos que os teriam substituído nos postos chave da competição democrática, da mesma forma como não se perguntam sobre as maneiras pelas quais eles chegaram a alcançar a preferência neste espaço político competitivo, desacreditando os antigos especialistas em lei e o tipo de conhecimento que os produziu (Dezalay§Garth 2000).
Neste artigo, procuro compreender quem são os indivíduos que estão agora ocupando o espaço de poder político no Brasil, o conhecimento que os produziu (ciências jurídicas e sociais, economia e administração, etc.), os procedimentos de recrutamento e as chances oferecidas aos pretendentes. Foram selecionados para estudo dois conjuntos biográficos comparáveis de políticos eleitos, com carreira de sucesso, nos dois colégios de mais alto percentual de eleitores no Brasil e com o maior número de assentos no Congresso Nacional: São Paulo e Minas Gerais . Também, visando uma comparação, analisei a biografia de 4 técnicos-políticos que participaram dos planos Cruzado e Real e assessoraram a presidência da República, cotejando-as com as dos eleitos.
O trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a problemática da transmissão do poder no Brasil e da profissionalização do pessoal político . A idéia que embasou a construção da pesquisa foi a de que a comparação desses dois conjuntos de biografias, em dois espaços de tempo político (1945/1964 e 1984/2002), acrescida do grupo tecnocrático, pudesse ser passível de funcionar como apoio para o estudo dos processos de legitimação do pessoal político, dos usos políticos das competências profissionais e do acesso às fontes de controle dos cargos públicos.

A pesquisa
Os dois períodos foram escolhidos para o estudo por se apresentarem como períodos de reestruturação, tendo sucedido a regimes autoritários, o que significou uma intensidade e uma maior visibilidade sobre o trabalho dos políticos.
O final dos anos 40 vivenciou o momento em que a transformação brutal do sufrágio – tornado obrigatório para os alfabetizados – e a criação de partidos políticos nacionais intensificaram as relações entre o eleitor (obrigado a votar) e o candidato (que tem necessidade do voto). E entre os próprios candidatos. A tendência foi no sentido de uma profissionalização do métier político, em especial porque com a implantação dos partidos sobre o conjunto do território nacional, e a necessidade de eles apresentarem o maior número de candidatos em todas as eleições – na mira de um crescimento de sua audiência –, aumentou a concorrência entre os políticos, tornando a competição muito difícil para os empreendimentos individuais. Neste período de aprendizado democrático, os políticos-bacharéis, envoltos em arcabouços jurídicos, ligados às mais prestigiosas faculdades de Direito, promoveram a estabilidade do regime, facilitaram as reformas sociais e protegeram o que se conhece com o nome de establishment. A data de 1964 é a do golpe de Estado que marcou a supressão dos partidos políticos existentes e cancelou as eleições para cargos de governador de estado e presidente da república.
Os anos que se sucederam aos governos militares (1984-2002) assistiram a uma considerável ampliação de eleitores com a inclusão do voto do analfabeto . Entretanto, o período se caracterizou pela crise de representação: corrupção, negociatas, nepotismo, etc. E o espaço do poder passou a ser, a cada eleição, ocupado pelos políticos “modernos”, ou “técnicos”, que construíram suas carreiras disputando o poder com as elites do Direito e os políticos tradicionais, trazendo agendas orientadas para a luta por valores ligados a abertura das economias e as privatizações, pertencentes ao que se nomeou Estado Neoliberal.
Para a pesquisa, utilizei dicionários biográficos (Abreu & Beloch, 2001; Monteiro, 1994) e entrevistas – não só as realizadas por mim, mas, e principalmente, as que vêm sendo publicadas pelo Centro de Documentação de História Oral do CPDOC e por outras instituições, como a Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
A escolha dos políticos foi feita a partir de um banco de dados biográficos, sendo que os da amostra são os de maior visibilidade nacional e com tempo de atuação política longo e de sucesso. Este critério de escolha se baseou no fato de que as funções políticas se tornaram uma profissão de tipo particular: possui regras imprecisas, seus protagonistas não as registram como sua profissão, e implica uma especialização e profissionalizações múltiplas . A maior parte dos políticos exerceu, ou mesmo ainda exerce, outras atividades. Sendo assim, nem todos podem ser considerados profissionais, no sentido de consagrar tempo completo à suas responsabilidades de homens públicos (viver para e da política no sentido weberiano). A profissionalização se desenvolve, entretanto, na medida do crescimento das posições ocupadas na hierarquia dos cargos. Como argumenta Gaxie (1993:88), “nem todos os políticos são profissionais, mas os principais são”, pois a atividade política no nível elevado supõe uma total disponibilidade psicológica e econômica. Mesmo assim, há importantes políticos ausentes nos quadros que se seguem. O fato se deve a que não acrescentariam elementos novos à demonstração pretendida.
A seguir estão quadros que sintetizam a trajetória dos 34 políticos selecionados para análise.










Transmissão do poder político e democracia
Uma leitura rápida dos quadros produzidos para a pesquisa induz a identificação de dois tipos de políticos. O que primeiro salta aos olhos é a cadeia dinástica que prende os mineiros no espaço público (que nomeio aqui “herdeiros”), contrastando com o grupo dos paulistas, que nos dois períodos analisados se apresenta como políticos de primeira geração familiar na política. Enquanto nomes portugueses de velhas famílias detentoras do poder político pesam no espaço político mineiro contemporâneo, no paulista, a maioria dos nomes estrangeiros indica a origem imigrante, ligada a negócios industriais ou comerciais, demonstrando renovação de geração política em São Paulo , desde 1945, com uma única presença de representação operária. Esta reprodução/renovação pode ser observada também no Quadro 8, no qual são apresentados os tecnocratas responsáveis pelos planos cruzado e real, apesar da pequena amostragem.
Num universo democrático, as competências simbólicas (notoriedade familiar, genealogia política, etc.) não deveriam ser condições suficientes para atingir os altos postos da República, em especial para aqueles que vão decidir quem e quais as competências legítimas no espaço competitivo dos postos públicos. A existência de uma cadeia dinástica nas posições dominantes da República afeta profundamente as regras admitidas numa sociedade democrática, pois contradiz o princípio de representação existente na alternância de poder, que se associa à idéia de eleição, ou de concurso público, ligado ao mérito, e introduz um elemento de permanência no lugar de livre acesso e esperança na transformação. Dentro deste raciocínio, a reprodução da liderança política mineira seria sintoma da negação da tese clássica da democracia. E a renovação dos porta-vozes das aspirações dos paulistas seria sintoma de progresso democrático.
Para a redação da pesquisa, estes critérios apriorísticos foram abandonados após uma análise mais cuidadosa dos quadros biográficos. No lugar da facilidade das fórmulas universais, preferi pensar as práticas políticas e sociais que contribuem para que um grupo de políticos com prestígio e poder, confundindo-se, em parte, com o jogo de relações estabelecidas no período do Império, sobreviva, com sucesso, à introdução do pluripartidarismo, ao aumento da concorrência eleitoral (com a entrada na política de candidatos de outras origens sociais) à liberdade de imprensa, à liberação das reuniões públicas e à ampliação dos espaços de ação no governo. Alem do mais, esta sobrevivência obriga, também a uma reflexão mais profunda sobre a complexidade do processo de autonomia do político em relação ao social.
Pensar este processo e, ao mesmo tempo, o caráter operatório do viés social no universo político é importante, especialmente quando se observa, por exemplo, o quadro dos técnicos que participaram dos planos cruzado e real (Quadro 8).
Portadores de alta competência técnica para gerar estes planos, integrados numa rede de relações que se assentam em universidades americanas, ultrapassando as fronteiras regionais e nacionais, estes personagens deveriam ser a prova de um novo sistema meritocrático, afastado de qualquer tradição ou origem familiar . Entretanto, a observação do grupo familiar que socializou três destes tecnocratas, traz a dúvida sobre a total desvinculação deles com um conhecimento político produzido neste meio. Os pais e avós de Lopes e Rezende foram importantes figuras da tecnocracia política dos anos 40 e 50. O parentesco de Bacha indica ligações tanto com a área legislativa quanto com a financeira. Estes ancestrais iniciaram a carreira, da mesma forma que a maior parte dos herdeiros da época, como técnicos nas secretarias de Benedito Valadares, atestando o pertencimento a uma elite política que, como demonstrou Rebelo Horta (1956: 47-77), formava uma rede de 27 famílias controlando a política do Estado em escalões burocráticos.
Dessa maneira, se lemos o Quadro 8 no sentido dado por Bourdieu (1989: 84-90) para estratégias , os dados indicam duas coisas:1) o senso prático das estratégias educativas de algumas famílias políticas que conseguiram, na socialização de seus herdeiros, interiorizar neles a capacidade de se adaptar a novos tempos, no caso o tempo da tecnocracia e, dessa forma, salvar o essencial do poder político que esta socialização visava garantir; 2) as afinidades eletivas, que aproximam os agentes dotados de habitus ou gostos semelhantes e são produtos de condições e condicionamentos sociais semelhantes. Não à-toa, foi um herdeiro político, Fernando Henrique Cardoso (Quadro 3), envolvido com a modernização do Estado brasileiro, que recrutou Edmar Bacha, Francisco Lopes e Lara Resende para gerir e negociar a implantação do “consenso de Washington” e as linhas consideradas legítimas para uma atuação política eficiente.
Assim, dentro do interesse em compreender quem são os indivíduos que ocupam o espaço de poder político no Brasil, a análise dos quadros biográficos produzidos para a pesquisa foi feita dentro do tema da reprodução/renovação da geração política, ou herdeiros políticos x novos pretendentes. Mas procurei pensá-los com base nos estilos diferentes de conexão política para acesso e ascensão aos postos nacionais, tendo em vista o fato de que a profissionalização no campo da política é coletiva, perigosa para iniciativas muito pessoais e as chances oferecidas aos pretendentes são muito diversas.
A hipótese que dirigiu a redação desta pesquisa é a de há exigências para a prática política que não se encontram nas idéias universais sobre a democracia, nem escrita nas regras jurídicas, porque têm bases sociais fora do campo político. As bases sociais delimitam as margens de liberdade de ação para o exercício do que se convencionou chamar de “artes da política”.
Herança na política e familiarização com o universo da coisa pública
Cid Rebelo Horta, no seu artigo muito citado pelos cientistas sociais, já havia, em 1956, chamado a atenção para “consciência de solidariedade” existente nos grupo familiares mineiros, concentrados em seus centros de origem, com resíduos de suas lutas do Império continuando a traçar a linha partidária e “permitindo aos parentes se descobrirem facilmente em cada eleição, para efeito do proselitismo eleitoral” (1956: 60-61).
A leitura dos Quadros 3 e 4 indicam que as conexões políticas e o lado ativo do conhecimento prático dos políticos de Minas Gerais ainda podem ser encontradas neste cenário oficioso da política, com suas redes de parentelas munidas de conhecimento do funcionamento dos trâmites parlamentares e dos altos cargos burocráticos. Este mesmo padrão descrito há 50 anos por Rebelo Horta pode, ainda, ser visto na região de base eleitoral dos políticos eleitos nas últimas eleições para deputado federal (Cf. TRE de Minas Gerais. Eleições 1988 e 2002, por município). Isto é, embora estes herdeiros contemporâneos tenham nascido e sido educados em escolas da capital, a ligação com o local de origem familiar é prática e simbolicamente mantida, vinculando as gerações uma às outras num jogo complexo de cadeias de influências. Com os vínculos que mantém, aprendem rapidamente a se conhecer e a reconhecer seus próximos e antagonistas.
O lado ativo do conhecimento prático de muitos dos eleitos estudados pode perfeitamente ser observado em seus locais de origem, onde desde cedo participam de festas íntimas e cerimônias políticas, mantêm contato com a população local e com as suas preocupações, escutam a história do lugar e de seus personagens que se confundem, muitas vezes, com a história política oficial. O deputado Roberto Brant, por exemplo, que nasceu e iniciou sua carreira pública longe de Diamantina, procura vincular seu nome à cidade de seus ancestrais, onde nasceu seu pai, o Desembargador Moacir Pimenta Brant. Notícias de jornais o mostram nesta cidade em inaugurações, recebendo personagens ilustres, etc.
A análise dos itens “Família” e “Região de base eleitoral”, no caso, nos mostra que: 1) a prática política dos políticos mineiros continua a ser elaborada no interior de redes sociais e políticas, em especial no que se refere aos princípios classificatórios que sustentam as indicações partidárias e as campanhas eleitorais dos “herdeiros” ; 2) continuam a ter sucesso as estratégias dos grupos políticos das zonas eleitorais mais antigas de Minas Gerais, que transformam em ilegítimas as candidaturas estranhas ao lugar; 3) o controle do acesso às fontes dos cargos públicos continua nas mãos dessas mesmas redes.
A análise da precocidade política, por sua vez, mostra a atividade pedagógica familiar dando sentido ao duplo jogo ao qual a família desses herdeiros políticos se empenha: o domínio da cultura histórica familiar e o da prática política.
No caso da prática política, com poucas exceções, os herdeiros a adquirem nos gabinetes de deputados e secretarias estaduais, ministérios e ante-salas do governo do estado e presidência da república, ou em cargos de confiança em agências estatais. Dentro desses locais aprendem a escutar e falar, a se informar da situação e das preocupações de cada um, a examinar minuciosamente as situações particulares, a ser ativo e eficaz, a fazer valer suas intervenções e realizações, a conduzir uma reunião – tomar a palavra no melhor momento, propor soluções inspiradas em programas de circunstâncias, exprimindo relativa originalidade – enfim, a se distinguir por suas competências e pelo saber “estar disponível” na “defesa de uma nobre causa pública”. Como assistentes, chefes de gabinete, ou assessores, criaram redes de dependentes na resolução de problemas difíceis para os leigos, e também ataram previamente os laços com os políticos mais experimentados, inicialmente como colaboradores, e mais tarde articulando as relações acumuladas nas coxias. Isto é, tiveram uma formação, ou instrução, dentro da tradição burocrática, e alcançaram os altos postos da esfera política seguindo o caminho das Secretarias chaves do Estado, como Finanças, Justiça e Interior, ou das demais agências de governo, antes de ingressar no teatro parlamentar.
Conseguiram ter acesso a essas posições graças aos laços pré-existentes, sempre começando como “menino de recado”, expressão empregada por um dos entrevistados mineiros, o que levou Hagopian (1986:189-232) a defender em sua tese de doutorado que a mistura de raízes oligárquicas, do serviço público e, freqüentemente, de uma competência técnica entre os notáveis são aspectos da política mineira que ainda permanecem intactos.
Mas a detenção dos recursos mencionados pela brazilianista não é mecânica. Uma observação do vice-governador de Minas, durante o governo de Israel Pinheiro (filho de Jõao Pinheiro, presidente do estado em 1906-08, e avô de Lara Resende), ilustra as marcas simbólicas dos ancestrais nas ações políticas como resultados de uma longa aprendizagem normativa. Observou que Israel, com a idade de 70 anos, “costumava dizer que não tomaria determinada posição, pois certamente seu pai não aprovaria” (Vaz, 1996: 21).
Esta aprendizagem influi sobre a percepção que o herdeiro pode ter dele mesmo, capaz de sustentar um projeto pessoal de reprodução da atuação de seus ancestrais, como bem explica Fernando Henrique Cardoso, também herdeiro político (Quadro 3):
“Meu avô era muito próximo do Floriano [Peixoto], foi seu ajudante-de-ordem. Meu pai, quando menino, e o meu avô moraram no Palácio do Itamaraty, onde Floriano vivia. Meu avô era então um jovem abolicionista, republicano e bastante exaltado. Foi depois o único general – ele e o Hermes [da Fonseca] – que apoiou a Revolução de 1922. Meu pai também participou da revolução de 1922. Um tio meu – irmão do meu pai – também foi preso em 22. [...] Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, meu tio-avô, foi ministro de Getúlio. O filho de Augusto Inácio foi também ministro da Guerra e também do Getúlio, na década de 50 [...]. Meu avô foi para o Rio Grande do Sul para lutar contra a Revolução Federalista. E ficou sob as ordens do pai de Getúlio, que era então um caudilho no Rio Grande. Estas histórias todas preencheram o meu imaginário, na infância [...] Estes personagens para mim, não eram de ficção. Eram pessoas. Eu fui digamos, socializado, treinado, nesse ambiente de revisão permanente dos fatos políticos, e muitas vezes em oposição ao governo.” (Toledo, 1998: 340)
Comparando esses dados de treinamento para a carreira com a prática política dos não-herdeiros, fica evidente a desigualdade de acesso ao poder. Quando se observa o treinamento político dos paulistas, por exemplo, a presença de centros acadêmicos, empresas jornalísticas, sindicatos e associações no lugar das ante-salas do governo é flagrante. Os políticos de primeira geração não tiveram a chance para utilizar os métodos de gestão e de governo entesourados pelas parentelas e a serem transmitido entre elas. Não herdaram, e, portanto não puderam assimilar, as receitas experimentadas ao longo do tempo de exercício de seus antepassados nas funções públicas em nível nacional. Não puderam, também, aprendê-las, abstratamente, na escola, pois, nos anos 50, os cursos de administração e economia apenas se iniciavam como objeto de ensino teórico escolar e eram, geralmente, procurados por jovens de extração social mais baixa, como Delfim Neto, o primeiro a deles se aproveitar para o impulso em sua carreira (Loureiro, 1977: 38). A formação nos cursos de economia e administração teve um impacto positivo em termos políticos apenas para a geração que se seguiu à reforma educacional de 1968, quando tais cursos se expandiram e valorizaram.
É sem dúvida por isso que no caso de São Paulo, onde está situada grande parte dos políticos de primeira geração, a coluna referente aos cargos públicos ocupados em agências estatais (Quadro 7) estaria totalmente em branco não fosse uma ligeira passagem de Delfim Neto pela CONSPLAN, em 1965, e a de Paulo Maluf por um ano na diretoria da Caixa Econômica. Leôncio Martins Rodrigues (2000), ao se referir às bancadas na Câmara dos Deputados (51ª legislatura), chama a atenção para o mesmo fato, isto é, de que há uma baixíssima proporção, entre os paulistas, de deputados que vieram do segmento do alto funcionalismo (1%), em contraposição aos 8% de Minas. Da mesma forma que nossa amostra exibe três dos 6 herdeiros mineiros como ex-diretores de bancos estatais, a de Leôncio registra 6% dos integrantes da bancada mineira como ex-diretores de bancos estatais. E nenhum paulista.
Mas há um outro percurso que os políticos iniciantes necessitam percorrer, que também a escola e a prática militante pouco podem ajudar. Trata-se do aprendizado longo, de alto a baixo, do funcionamento das Assembléias Legislativas e de seus regulamentos. Ora, as práticas dos procedimentos jurídicos nos trabalhos das comissões das assembléias – a chave da vida parlamentar – são extremamente complexas e exigem alto grau de sutileza para seu exercício. As condições de discussão para produção de um texto são acompanhadas de um considerável corpus de precedentes. Por esta razão, as comissões foram sempre utilizada como recurso político pelos herdeiros mineiros.
Se a trajetória dos herdeiros pressupõe, além da existência prévia de recursos familiares, uma herança política a lhes permitir uma aprendizagem suave, previsível e lenta do ofício nas secretarias do governo e órgãos estatais, a dos políticos de primeira geração pode ser vista sendo desenvolvida muito mais no quadro de operação de militância e movimentos políticos de massa (dissidências paulistas das décadas de 1920 e 1930, organizações sindicais patronais ou de trabalhadores, movimentos estudantis ou populistas) ou de empreendimentos nos campos do direito (escritórios de advocacia) ou do jornalismo.
O resultado foi uma luta pela conquista de postos do poder muito mais evidente entre os políticos de primeira geração do que entre os herdeiros e cooptados das grandes famílias. Para estes, a garantia de aquisição dos postos é uma luta mais de manutenção do que de conquista, a qual se desenha na longa duração, de uma geração a outra. Para os políticos de primeira geração, sem ligação com as grandes famílias, como é o caso da maioria dos paulistas da amostragem, a luta é totalmente marcada pela conquista e acumulação de um capital militante e/ou escolar para se conseguir alcançar os postos políticos eletivos. Esta conquista tem duração longa.
O fato pode ser visto no Quadro 9, das idades do primeiro cargo eletivo. Ele mostra o recrutamento dos herdeiros para os postos eletivos na faixa média dos 30 anos e o ingresso mais tardio na carreira política dos novos pretendentes (faixa média dos 47 anos), a partir de uma situação profissional já estabelecida em outras áreas. É o que explica também o fato de os não-herdeiros terem sido eleitos pela primeira vez diretamente para cargos de nível nacional, ao contrário dos herdeiros, que começam, em geral, pelos cargos locais. Os dados também indicam a importância do investimento nos cursos de pós-graduação, que firmaram uma moderna e internacionalizada estrutura de formação acadêmica nos anos 60, para a legitimação dos políticos de primeira geração e a renovação de estratégias dos herdeiros no campo da tecnocracia (Quadro 8).

Os diplomas e o conhecimento que concorre para a produção de um político
Dos 14 políticos em evidência no período 1984-2001, quatro possuem o diploma de direito. Os quatros são herdeiros políticos. Contrasta com o período anterior em que a maioria (18 dos 22 políticos da amostragem) cursou uma Faculdade de Direito.
Soa estranho a nova geração preterir a formação em direito, pois esta formação sempre marcou os que tinham pretensões nesta carreira. O domínio da técnica jurídica é a pedra fundamental de um deputado, considerando que o trabalho parlamentar está orientado para um objetivo preciso: a fabricação da lei. Nas comissões, e também nas sessões plenárias, os deputados se exercitam emendando textos, retomando cada artigo, parágrafos, frases e palavras. E como já bem demonstrou Mattei Dogan (1999:177-178), o sucesso de uma comissão parlamentar depende muito mais da energia despendida pelos políticos nos procedimentos jurídicos do que da justeza do que ali se advoga. O rigor jurídico foi o trunfo de muitos dos políticos da amostra nas comissões parlamentares dos anos 50, em especial nas duas encarregadas dos interesses mais fortes: a da constituição e justiça, e a de finanças e orçamento.
Mas é também a aprendizagem, se não do talento oratório, mas pelo menos do hábito de falar em público, que sempre ajudou a explicar a procura pelo curso. Franco Montoro, em suas memórias, não deixa dúvidas quanto à importância de tal formação: “Foi na São Francisco que aprendi a falar em público, instrumento indispensável de todo político interessado em explicar e convencer. Entrei para a Academia de Letras da Faculdade e, assim que ganhei algum desembaraço, deixei de lado os textos escritos, trazendo no máximo algumas notas que me serviam de guia nas exposições mais longas” (2000: 42). Pois é bom lembrar que a defesa no Parlamento não é diferente daquela do tribunal: trata-se de convencer. Trocas de opiniões, deliberação publica, fabricação da lei são inseparáveis da expressão dos interesses e da figuração para o publico de uma relação de força. O debate parlamentar é uma batalha, face a face, onde o texto se torna um pretexto à manifestação de antagonismo entre dois campos e propósito para demonstração das paixões políticas.
Se nos anos 1945-64, a maioria dos deputados da amostra saiu de uma escola de Direito, o período 1984-2000 assinala esta preferência sendo suplantada por outras carreiras mais técnicas.
Estando em jogo os programas de reforma econômica, advindas da nova ordem mundial e suas implicações decorrentes da expansão de desemprego e intensificação das crises financeiras, o que se observa entre os políticos do período 1984-2001 é a preferência pelos cursos de economia, administração e engenharia (Quadro3). Há uma tendência, também de escolaridade mais longa. Dos novos pretendentes, três possuem doutorado em economia, sendo dois deles nos Estados Unidos. Entre os herdeiros houve também aumento do tempo escolar: Fernando Henrique tem pós-doutorado, em sociologia, nos Estados Unidos e na França, e Bonifácio de Andrada, como herdeiro mineiro, fez doutorado na própria UFMG, naturalmente em direito público.
Mas a maioria dos herdeiros abandonou a escola após a graduação cursada em universidades locais. Isto se explica provavelmente pelo fato de que, para o herdeiro, herdado pela política, no sentido referido por Marx aos camponeses (a terra herda o herdeiro que a herda), fica difícil o afastamento do jogo político local para participar de cursos em circuitos internacionais. O princípio das conexões eleitorais, ligado nas complexas situações de pertencimento e cadeias de influências, é a garantia do herdeiro e sua sobrevivência a diversas eleições. Subir lentamente os degraus do poder implica a manutenção dos vínculos simbólicos com o patrimônio eleitoral herdado. Uma circulação internacional, no caso, acabaria sendo vista como ausência de raízes. Para o herdeiro, o cosmopolitismo é visto como um estigma.
Por outro lado, para aqueles que não têm as mesmas conexões simbólicas com locais de origem como base para a formação de redes eleitorais, a idéia de internacionalização se inverte, tornando-se trunfo para acumulação de capital político, em especial no momento das transformações no sistema político e no aparato estatal, como o ocorrido a partir dos meados dos anos 60. Tais transformações servirão de justificativa para o início da inserção de pretendentes à carreira política no circuito científico internacional. Melhor dizendo, a modernização no período militar inaugurou novos canais de acesso aos postos políticos, em especial os cargos na área econômica, trazendo o peso da legitimidade científica para o processo decisório.
Em Minas, o crescimento dos técnicos políticos tornou-se mais evidente na administração de Israel Pinheiro (1965-1970), que inaugurou o “planejamento científico” no Governo de Minas Gerais. Como seu pai, João Pinheiro – o positivista presidente de Minas dos anos 1906-1908 –, no afã de promover o desenvolvimento econômico do estado, Israel convidou muitos técnicos para o governo. E muitos deles foram recrutados entre determinados filhos da oligarquia que, regularmente, desde o Governo Valadares, passando pelo governo Kubitschek, vinham redefinindo o saber necessário à política dentro das secretarias e agências de governo. Para Hagopian, esta peculiar gestão familiar do serviço público é o que explica por que, contrariamente ao acontecido em São Paulo, a transferência de poder nos cargos públicos em Minas Gerais, dos políticos para os técnicos, foi menos abrupta. Em Minas, “em meados da década de 1970, as elites políticas tradicionais e os tecnocratas ‘compartilharam’ o estado” (1986:192). Na verdade, até mesmo o mais importante posto político, o de governador do estado, foi escolhido pelo governo militar dentro da oligarquia.
O fato pode nos dar uma idéia de como a virtuosidade política dada pelo grupo familiar de origem, ou pela aprendizagem nas secretarias de Estado de Minas Gerais – que funcionavam também no modelo da organização familiar – pode se transformar em aprendizagem racional, sem que uma substitua a outra. Maria Arminda Arruda (1989) chama a atenção para este aspecto contraditório quando compara o projeto de criação dos primeiros cursos superiores de ciências políticas e econômicas em Minas Gerais e em São Paulo. Lembra ela que a criação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Minas Gerais, em 1941, contou com a participação do empresariado financeiro mineiro e representantes das associações patronais (Federação das Indústrias e Comércio), tendo como figura central o banqueiro Ivon Leite de Magalhães Pinto , e um corpo de professores de nomes conhecidos nacionalmente, como Lucas Lopes e José de Magalhães Pinto. Em São Paulo, diferentemente, a iniciativa de se criar uma escola superior de economia se deu no quadro das orientações que presidiram o projeto da Universidade de São Paulo, isto é, voltada para a Faculdade de Filosofia e com ênfase na orientação jurídica e no caráter de complementação cultural (Limongi, 1988), passando a ser procurada por jovens sem condição econômica para freqüentar a prestigiosa escola de direito do largo São Francisco ou a Politécnica, ambas da USP (Loureiro, 1997:37). A própria Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, ligada a Roberto Simonsen, não tinha a economia e nem o serviço do Estado como centro catalisador . Já na Faculdade de Ciências Econômicas de Minas Gerais, o objetivo era formar economistas voltados para a macro-economia. Os formandos em Sociologia e Política e em Administração Pública eram orientados “no sentido de assessorar o governo” (Arruda, 1989: 254). Este programa, deslocado da realidade agrária da economia mineira, estava, entretanto, de acordo com os planos políticos de formação de um profissional que se tornava necessário no plano nacional numa época em que Getúlio consolidava as bases do Estado Nacional e os primeiros passos para um planejamento da economia. O fato é melhor explicitado pelo cientista político Bolivar Lamounier, ex-aluno desta escola:
“Eu me lembro de ter lido uma vez a oração que Oliveira Vianna faria na abertura da Escola de Sociologia e Política de São Paulo [...] É interessante que ele dizia ali um pouco ingenuamente, pois ele era excessivamente tecnocrático [...] ele imaginava uma escola que, na verdade, se realizou em Minas. Quer dizer, uma escola para formar pessoas que vão pensar os problemas do governo […] Ninguém tinha duvida de que naquela faculdade estavam se formando os técnicos futuros do Governo do Estado. E isto de fato aconteceu [...] Eu, por exemplo, tive como professor de política Econômica o Fernando Reis, que se tornaria, posteriormente, figura poderosa do estado, presidente da Cia. Vale do Rio Doce, diretor de empresas estatais.” (Arruda, 1989: 254)
Em Minas, tratava-se, positivamente, de formar profissionais bem adestrados, com intimidade com os problemas da gestão pública e privada. A montagem da estrutura arrojada da escola se completou com o sistema de bolsas de estudo, que contemplava os melhores alunos, selecionados após provas seletivas, e pela obtenção do tempo integral para os professores. Nas palavras do diretor Ivon de Magalhães Pinto, “cumpria que a faculdade passasse a diplomar elementos mais capacitados, para serem utilizados pela própria escola nas atividades didáticas e técnico-científicas e ainda para atender as necessidades do mercado profissional. Daí a idéia do regime de tempo integral de estudos para alunos, mediante o sistema de bolsas de estudos” (Arruda, 1989: 258).
Não é surpreendente constatar que Edmar Bacha tenha feito graduação nesta escola criada pelo pai de um futuro colega na PUC do Rio de Janeiro, o Prof. Francisco Lopes. Ambos, após terminarem o curso de economia, usufruíram um dos efeitos da modernização do país, que foi a instalação dos programas de pós-graduação no exterior, o qual passou a dar legitimidade política a alguns indivíduos que, como eles, com respaldo anterior em redes políticas brasileiras, puderam se inserir no circuito internacional dos diplomas para acesso ao campo político.
Esse foi o caso dos economistas citados acima e de um outro herdeiro, André Lara Rezende. Os três não eram herdeiros de um patrimônio eleitoral, mas de um estilo de político mineiro inaugurado em Minas pelo bisavô de Lara, João Pinheiro, seguido por Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro. O objetivo deles não era o trabalho parlamentar – nenhum desses três se sobressaiu nesta área –, e sim atuar como planejadores e executores de políticas econômico-financeira de um estado modernizador.
O ponto de encontro desses políticos-técnicos de Minas situava-se nas Secretarias de Benedito Valadares, nos anos 1930, e na Cia. do Vale do Rio Doce, nos anos 1940, de onde saíram as afinidades eletivas que vão também unir seus descendentes na PUC do Rio de Janeiro e em Harvard. As redes montadas pelos técnicos políticos de Minas, tanto no Brasil como no Exterior, nos anos 40 e 50, e as práticas adquiridas na participação nas Comissões Mistas Brasil-Estados Unidos durante o Governo Getúlio Vargas, não passaram em branco para seus descendentes. Isto pode ser visto com a criação do departamento de Pós-graduação em Economia da PUC , grande parte sob a responsabilidade de Francisco Lopes e Edmar Bacha, cujo pai e tio já haviam participado da criação da faculdade de Economia de Minas. Não se pode esquecer, também, a desenvoltura com que Lara Resende apresenta, com 33 anos de idade, o seu artigo brasileiro na reunião do Fundo Monetário Internacional, em 1984 (Sardemberg, 1987:42-46). O respaldo dado pelos meios financeiros e acadêmicos internacionais a ele e aos planos elaborados por ele, seus professores, além de Pérsio Arida, tiveram a ver com a competência do trabalho, mas a visibilidade na imprensa e a decorrente aplicação se devem a redes anteriormente estabelecidas e a autoridade e credibilidade interiorizada por estes herdeiros técnicos-políticos na explicitação de seu trabalho no circuito cientifico internacional, permitindo-lhes reforçar a diferença em relação a outros grupos políticos e econômicos.
Assim, o efeito do diploma adquirido pelos herdeiros mineiros foi muito desigual, e dependeu da posição de cada um deles neste campo, mais precisamente, da distância ou proximidade com uma experiência política de gerações anteriores em assessorar o governo no plano nacional.
Já os diplomas de doutorado dos filhos mais novos de famílias de imigrantes enriquecidos na indústria, como Eduardo Matarazzo Suplicy, serviram para que eles agissem na política de maneira mais externa. A pós-graduação nos Estados Unidos foi útil para Suplicy adquirir espaço num partido político nascente, como o PT, aí se integrando como conselheiro, a partir de estudos realizados sobre controle de preços e salários.
Militantes estudantis exilados em 1964, filhos de pequenos comerciantes de bairros de imigrantes, como José Serra, tiveram, com a política de bolsas de agências internacionais, a oportunidade de fazer investimentos escolares que não eram compreendidos pela geração de seus pais. Com apoio de movimentos de esquerda na América Latina, em especial da ala católica (era da AP), Serra, por exemplo, ganhou a possibilidade de fazer rupturas e reconversões sociais importantes, e a chance de ingressar na política, via redes políticas de Franco Montoro ligadas à Igreja Católica (Quadro 5), que o nomeou Secretário do Planejamento do Estado de São Paulo durante seu governo pré-abertura. De conselheiro, poder-se-ia talvez dizer, ele se tornou herdeiro de Montoro e de sua democracia cristã.
Este duplo movimento, perder algo e ganhar a possibilidade de fazer rupturas a partir da adversidade, como José Serra, foi o mesmo a levar Fernando Henrique à sua trajetória política de sucesso após o exílio – no qual acumulou um capital científico ímpar nas instituições acadêmicas de ponta do Chile, França e Estados Unidos. Após sua volta, e ter perdido a cátedra de Ciências Políticas na USP com uma aposentadoria compulsória, o capital de relações acumulado no exílio ajudou-o a criar o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), financiado pela Fundação Ford. E aproximou-o da área empresarial, via as encomendas de pesquisa. Mas ele próprio não deixa de reconhecer que seu sucesso político não se deve somente aos esforços despendidos em sua formação acadêmica e ao acúmulo das relações. “Fui socializado, treinado nesse ambiente de revisão permanente dos fatos políticos, e muitas vezes em oposição ao governo” (Toledo, 1998:340). Isto é, um treinamento político na família, que o aproximou de Ulisses Guimarães, no momento em que este procurava outras alianças capazes de legitimar a campanha das Diretas Já e o fortalecimento do PMDB. De menino que escutava as discussões e as histórias políticas da família, e de intelectual que aprendeu a “anotar com paciência, perguntar, perguntar de novo” (Toledo, 1998:343), passou, com a rede já montada por Ulisses, a pensar e a atuar como um profissional que se tornava necessário no plano nacional, escrevendo o novo programa das oposições, o MDB (Garcia, 2003:4).

Considerações finais: herança na política ou transmissão?
O que esta pesquisa deixou até agora como saldo é o sentido do trabalho coletivo do político articulado em redes. Pensar nessas redes implica um mergulho não só nas estratégias de educação, mas, principalmente no significado de uma herança em política.
O caso de Lula é exemplar para uma discussão desse quilate. Não recebeu uma educação escolar e não foi socializado em uma tradição familiar de políticos. Sua possibilidade de arranque lhe veio de um capital político acumulado em movimentos sindicais operários e um momento político favorável às alianças e articulações, o mesmo momento aproveitado por Fernando Henrique junto à oposição liberal. Mas diferentemente de um herdeiro como Fernando Henrique, Lula, só dispondo de um capital político militante, articulou-se com outros militantes, seja de partidos de esquerda, sindicalistas ou universitários, para criar o PT.
A narrativa de um socialista histórico, Antonio Candido, sobre a fundação do PT em 1980 no Colégio Sion mostra bem toda uma esquerda militante brasileira que recolhia seu espólio para investi-la em algo:
“Não hesitei em ir à reunião histórica do Colégio Sion, em fevereiro de 1980, na qual me sentei ao lado de um antigo companheiro do Partido Socialista, Paulo Singer, vendo que lá estavam também outros companheiros mais velhos, como Lélia Abramo, Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, que receberam grandes aplausos. Lembro que chamou minha atenção um sinal dos tempos: a presença de pessoas originárias de opções ideológicas que alguns anos atrás se hostilizavam, por vezes com grande aspereza: stalinistas, trotskistas, socialistas democráticos. Ao vê-los reunidos em coexistência pacífica, como quem partilha de convicções comuns, percebi que estava começando uma era diferente na história da esquerda brasileira.” (Souza, 2000:1)
Nesta reunião cumpria-se uma formalidade indispensável, de acordo com a Lei nº 6.767 que modificou os dispositivos da Lei Orgânica dos Partidos Políticos de 1971. Para que o registro da nova agremiação se tornasse possível, haveria a necessidade de um manifesto, com um mínimo de 101 assinaturas, expressando os objetivos e as linhas fundamentais de pensamento que deveriam ser a base da proposta do partido. Entretanto, a mesa que dirigiu os trabalhos , com a presença de Lula, o número de pessoas que compareceu (uma média de 700) e as seis primeiras pessoas que assinaram o trabalho, representantes históricos dos partidos de esquerda , demonstram que Lula se tornou um político, não somente porque era um sindicalista, mas porque ele foi, à sua maneira, um herdeiro também. Não de uma oligarquia, mas foi herdado pela esquerda brasileira, que o herdou.

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